sábado, 2 de julho de 2011

“No dia em que chover cangalhas em Niterói, temo por muito dos intitulados ‘poetas’ desta cidade!”


Ouvi a frase acima, certa feita, de um amigo arguto, militante do movimento literário de Niterói (se ele desejar se apresentar, certamente se manifestará com um comentário a esta postagem). Tal provocação, entretanto, parece não pretender ser uma agressão aos das Letras. A frase só soa ofensa para aqueles que, vaidosamente, almejam a alcunha de poeta, sem merecê-la. Para os autênticos poetas (e para os apreciadores despretensiosos da boa poesia) a frase talvez soe até divertida e espirituosa. Penso que poderíamos tê-la ouvido da boca do genial Agripino Grieco ou de outros espíritos lúcidos como Afrânio Coutinho.
Ora, considerando que a poesia é uma das coisas mais difíceis que o homem poderia fazer (a ponto de Hegel, o filósofo alemão, em sua Estética, elegê-la como a arte mais excelente, justamente por não possuir materialidade, sendo, pois, ideia pura). Creio, mesmo, que poucos sejam merecedores da alcunha de poeta em nossa cidade... Pois, afinal, o que mais se vê são poetas ingênuos escrevendo pieguices; homenzinhos entediados fazendo versinhos pueris que falam de boninas e malmequeres e, o pior de tudo, oportunistas (candidatos a políticos) que publicam excrescências rimadas em brochuras feitas sob encomenda para ganhar popularidade em datas como o Dia Internacional das Mulheres, o Dia dos Namorados ou o Dia das Mães...
E o que diria, sobre isso, um John Keats (que passava seus dias, junto ao seu fiel escudeiro Charles A. Brown) debruçado nas obras de Homero, Virgílio e Milton tentando “aprender” poesia? Talvez não dissesse nada! Ou talvez dissesse, fazendo coro com mestre Paulo Rónai: “ − Não se atira em fantasmas com tão poderosos canhões”... Enfim...
Alguns poderiam me perguntar, provocadoramente: quem seriam, então, esses autênticos e poucos poetas de Niterói? Uma resposta a esta pergunta seria evasiva e, quiçá, abusada: − Alguns já apareceram neste Blog, outros ainda aparecerão... −. Ora, se a resposta é evasiva e abusada, não devemos dar margem a fazer com que a ambiguidade macule nomes respeitáveis de autores com poesias irretocáveis. Minha homenagem hoje, portanto, é para um desses impolutos nomes: Beatriz Chacon.




Beatriz Escorcio Chacon, carioca da Piedade, vive em Itaipu, Niterói, onde começou a mostrar poemas pra colocar na parede, com desenhos de Miguel Coelho, em 1987. Jornalista pela UFF, é autora dos livros de poemas "Mesa Posta" e "Veios do Corpo", e do infantil "Surpresa de Quintal". Aposentada, avó, aparentemente dona vadia de casa, faz performances poéticas, eventos de arte, prepara novo livro – uma novela de vozes femininas. Orienta a Oficina Literária da Universidade 3ª Idade e participa da Associação Niteroiense de Escritores. Entre as Coletâneas – Prêmios, Crítica, participação: "I Concurso Jornal Balcão de Poesias", Rio, 1988. "Saciedade dos Poetas Vivos", Ed. Blocos, Rio, 1991 e 1995. "Prêmio Stanislaw Ponte Preta", Crônica, RioArte, 1992 e 1994. "Além do Cânone - Vozes Femininas Cariocas Estreantes na Poesia dos Amos 90", org. Helena Parente Cunha, Ed. Tempo Brasileiro, 2004. "Contos do Rio", Prosa e Verso de O Globo, Ed. Bom Tempo, 2005; "Poesia Sempre", nº 24, cap. Poesia Inédita, Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 2006. Participa da Saciedade dos Poetas Vivos Digital - vol. 6.



D de dó

Beatriz Chacon

Ainda vivem
essas casas de varandinha
avencas e teias dependuradas
cadeira de balanço ainda
e vaso de florir a renda
ainda engomada
na mesinha de cedro
de sobreviver.
Essas casas de vestido franzido
de chita
suspiram de janela fechada
o tempo ido
a família do álbum
o Natal de dentro
o medo além-muro
de raízes e heras.
Só de fora
o amarelo de sorrir
da varandinha de viver
de teimosia.
Eu tenho dó
dessas casas de poesia acanhada
de só se abrir
porta da frente
em noite de Ano de novo
algum dia de aniversário
e despedidas de
moradores da casa


Plena nudez

Eu e meu útero
somente agora
maduro
pleno
um corpo só nosso.
Pêra madura sou eu
dentro dele
ele contorno fêmeo
de mim.
Depois que toda minha mãe
secou
e meu filho
criou mundo
desnudamos nossos floridos.
Em bolsas de mágoas vermelhas
se foram tabelas e partos
cordões agridoces
repartidos.
Enfim estação de sumos
orgia de polpas e bênçãos
intimidades.
Enfim sós,
eu e meu útero
um só corpo nu
pêra mordida no cio
desfrutando outros nus
indecência sagrada.

(CHACON, Beatriz Escórcio. Veios do Corpo.
Rio de Janeiro: Editoração, 2000)







Beatriz e antilira


Marco Lucchesi


Acabo de ler Veios do corpo. Tenho a impressão de uma coda de Mesa Posta. Mais denso e claro. Mais leve e afiado. Versos breves. Essenciais. O mais no menos. E, no entanto, o rumor fundo segue como antes: o quotidiano e seus rastros. A infância. A Terra-Mãe. Um repertório de imagens, algo dissonantes, como na lição de Bandeira.
Quotidiano e saudade. Coisas reais e ilusórias.E muito das serestas. Cartola e Noel. O Centro e o subúrbio. E Piratininga, majestosa, a compor sua paisagem lírica. Lembro-me de Homero homem e de Ângelo Longo, que admiravam a alma fluminense, a alma das ruas de Mesa Posta. Ruas de uma geografia toda sua. E essa busca de identidade, essa carta de achamento, essa biografia lírica, essa autobiologia, que demarcam tanta inquietação. Forma-corpo-desejo. Sem tais elementos, sua expressão deixava de existir. A vida e seus desafios. O mundo e sua afirmação. O feminino e sua promessa. Tudo isso, a emergir de seu quotidiano. Feridas abertas. Coração generoso. Agridoce Esperança. Beatriz sorri. E o melhor de Veios habita essa contradição. Uma trama que inesperadamente se destrama. Penso em Aos meus cuidados, Seio farto, Estragos, Mapa-mundi. Uma antiBeatriz que tudo subverte. Ou quase: Uma contramusa de letra e de carne, delicada e rude. E surpreendo na leveza de Veios uma lactência, um drama que sorri de si mesmo, nos textos mais fortes. Beatriz sorri do Paraíso. Olha para o Beco. Pasárgada. Ciméria.