sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Deve haver canções melhores de se cantar...





Diálogo com o poeta Sandro Rebel no trajeto da Livraria Ideal até a Praia de Icaraí:



Rebel falava do desânimo que dá quando, por mais que criemos, escrevamos e façamos por onde estar motivados para produzir literatura de qualidade, constatamos que todo este esforço, cedo, é reconduzido a uma certa zona de indiferença.


Eu, por minha vez, dizia compartilhar dessa insatisfação reconhecendo que existe certo descaso por parte da mídia divulgadora e, mesmo, das livrarias e dos leitores. Estes últimos chegam a julgar que trabalhar um livro durante um ano seria demonstração de apego, supervalorização da obra e, até, falta de criatividade.


Sim! Há o limbo (insistia Rebel mais melancólico do que indignado), e este é responsável por um “esfriamento” precoce do trabalho. Com isso, sua acolhida ocorre junto a um pequeno grupo local que, invariavelmente, é formado por nossos pares. Raro ultrapassar esses limites...


Diante dessa lúcida evidenciação, comecei a elucubrar em que medida tal fenômeno não teria a ver com o Mundus vult decipi denunciado pela teoria crítica da Escola de Frankfurt, especialmente por Adorno, quando ali se diz que a Indústria cultural (nesse caso, a indústria editorial, que trata a peça mediana e a obra prima de igual maneira) trata a cultura (nesse caso, a literatura e os livros) como bem de consumo, reduzindo-a a um produto cujo valor é o de mercado (valor, este, que seria o único a garantir sua duração, promoção e visibilidade). Indo mais fundo, pensei que Heidegger está com toda razão ao diagnosticar o niilismo da técnica como valor promovedor de nossa época. Um tal niilismo, já tão autonomizado, faz com que qualquer motivação e atitude tenha seu sentido e valor humano esboroados... o resultado disso seria a vaga impressão de que o que quer que se faça dá em nada...


Rebel continuava a externar sua perplexidade dizendo não entender como literatos de gênio e carisma conseguem ficar à margem de tudo. Como excelentes trabalhos recebem menor reconhecimento que o devido... Falava do desejo, que um dia assola cada um de nós, de deixar de insistir na literatura e ir se dedicar a outra atividade (quem sabe criar ovelhas, como até o Aquiles da Ilíada se sentiu tentado a fazer...).


Sobressaltaram-me, neste momento, os versos de O artista inconfessável, de João Cabral de Melo Neto: “Fazer o que seja é inútil./Não fazer nada é inútil./Mas entre o fazer e não fazer/mais vale o inútil do fazer”. Quer dizer, não bastasse a punição da indiferença dos muitos, o literato, o artista, o homem de cultura ainda precisa manter-se vigilante contra o aquilo que Nietzsche chamou de “pathos do em vão”. Não dá para fazer nada, mesmo quando tudo parece redundar em nada...


Rebel desce na praia, em frente ao cinema Icaraí. O ônibus segue e eu, vendo os bancos da orla, me lembrei da eloquente solidão da estátua de Drummond num lugar parecido... Súbito, ao meu lado, uma jovem dispara em seu celular uma música “sertaneja universitária” (perdoem, mas a ironia saudável não pode faltar aqui: isso deve explicar porque o ensino universitário anda tão mal em nosso país) que trazia a seguinte letra:

“Te dei o sol, te dei o mar
Pra ganhar seu coração
Você é raio de saudade
Explosão de sentimentos
Que eu não pude acreditar
Ah! Como é bom poder te amar”

O autor deste primor (fico imaginando o que um Agripino Grieco diria disto) já obteve reconhecimento nacional e tem suas letras cantadas por multidões...

Pensei na ansiedade de Rebel, na solidão de Drummond, no niilismo da era da técnica moderna (é verdade, pensei que nem Hölderlin seria capaz de formular algo como “meteoro da paixão”) e me perguntei se não deve haver canções melhores de se cantar... Algumas das canções que eu acredito ser redentoras deste quadro apocalíptico constituem a postagem de hoje:



Rosaly Fonseca



Palavras-vento


Se quiser palavras concretas,
Claras, exatas, diretas,
Peça às paredes,
Não a mim.

Essas palavras-tijolo,
De que se constroem
Pensamentos,
Não soltam riso nem choro,
Não sentem gozo ou tormentos.
Sinta as palavras-vento,
Dentro do quarto e da alma,
Contentes e quentes de sol!


À noite elas vêm, bem tarde,
Frias de lua e saudade
E se deitam em meu lençol.



Antônio Barcellos Sobral


Se fosse possível

Se fosse possível mataria a palavra rombuda.
A palavra sem coração – pássaro sem canto.
Gruta sem respiração. Deceparia
a palavra com que o homem arma
o canhão. Rasga a trincheira. Derruba o avião.

Canonizaria a palavra bate-estaca.
Que crava na pedra do ódio da má vontade
o alicerce da paz. Se fosse possível
domesticaria a palavra com que o bruto

abala e escandaliza a criança. E riscaria
a palavra com que se treme de medo.
Depois sopraria a brasa da palavra amorosa.
Que é onde estamos naturalmente.

Onde filósofos e santos desenham
o perfil da felicidade.
Palavras com hálito de anjo. Vamos dizê-las
entre os cumes da violência.

Maria Helena Latini


Disciplina

Disciplina,
fio de prumo:
Duro percurso
de repetir
repetir
na paciência
de relojoeiro
com ajustes
suor
rigor
certeiro olhar
alvo e dardo
na busca constante
da precisão,
ponto exato.
Lena Jesus Ponte


Criação

Vai-se o primeiro pássaro migrando
– ponta de seta aponta o rumo certo.
Vai-se mais outro e mais... outros riscando
geometrias no céu antes deserto.

Que mistério os agrupa, os põe tão perto
da harmonia da Música? Só quando
um solfeja seu voo, o bando esperto
incorpora o deus Shiva e sai dançando.

Também aves-palavras, que se agitam,
e logo outras, os ninhos para trás,
se integram ao traçado que se cria

em pleno voo. Enfim, a obra se faz.
Enquanto no papel elas levitam,
raia, sanguínea e fresca, a Poesia.

Jafran Bastos

 
Artesanato

O caminho da mão
            É que tece o poema
O poema é que tece
            A coisa arquitetada
Essa coisa tecida
            É a memória passada
De um fio a outro fio
            De um tempo a outro tempo
E o tempo – essa fração
            Da eternidade
                  Leva
A tecedura humana
             À elevação
               Por isso
A poesia a mão tecida
             É o caminho que tece
A direção da mão
             É a mão que tece a escala
Do eterno
             O caminho.

Armando Freitas Filho



Um dia
impossível de lilases.
Uni dia
ou um dilema?
Qual a face da moeda
que resistirá mais tempo
fechada na palma
ao suor da corrosão, à ferrugem
emudecendo uma voz do dueto
para dourar a outra, rim solo
para durar ao sol de um dia inteiro
às voltas com sua própria sombra
num duelo único, unânime
no espelho, longe das luzes dos diademas?

Alexander de Carvalho



Desejo

Atrás daquela porta
torta
minha imaginação
comporta
o que calada
minha boca declara
ao salivar espasmos
no encontro
entre dentes e lábios

Belvedere Bruno


Portas Abertas

Portas abertas...
A bem da verdade,
nunca uso trancas.
Quantas vezes
me abaixo, catando
mil e tantos cacos.

Não me despedaço!
Apenas proíbo
que tons ocres
decorem meus dias.

 
Beatriz Chacon


Manhã Ladrilhada

Duas escovas se trocam dentes
bocejos
nos frios da mesma pia.
Chuveiro de uma só melodia
mistura mornos e pêlos
no sabonete.
Um monograma se borda no outro
cada qual enxugando
o próprio corpo.
Ele perfuma barba
ela inventa maquiagem
uma abelha cai morta no mármore.
Azulejo casando linhas
eu te olho tu me olhas
eu te amo tu me amas
o espelho descasa faces.
Até mais tarde mais ver
adeus
até mais logo
o azul se estilhaça lá fora.

 
André Luiz Pinto


Retinas cedo
à crontraluz,
o dia, indenso
negro em sol,
raia sem deitar
as lembranças
o luar crescendo nos
móveis, o lamaçal
da cama;
pontífice,
encerremos; ainda
doses de canalha,
silente a rigor,
às costas, outro
poderia ser teu:
a tentativa do azar,
que vence.
Marcia Barroca
 

Marionetes

Os caminhos, se apresentam
cobertos de musgos
e a energia resultante de tudo
que o atravessa,
é bastante envolvente.
A alegria é torta.
E o começo parece já o fim.
Ecos sobressaem aos gritos
parecendo uma constante
guerra nuclear.
As pessoas passam
sem perceber que estão
envolvidas em algo
muito maior.
A manipulação encobre tudo e a todos.
Somos todos marionetes,
fantoches do destino
escárnio dos deuses.
Nada nem ninguém
soma ou diminue algo.
Foi tudo planejado
metodicamente,
como se a ordem pudesse
ser controlada
por computadores.
Parece absurdo, mas não é.
Neste caminho onde
todos os humanos se encontram,
a realidade é sórdida
e somente aqueles que,
se rebelarem
conseguem enxergar
as cordas que
os prendem.
Tenório Telles


Salexistência

Salário

Sal

salga meus sonhos
meus olhos

Sal

que fere
minhas chagas
salmouradas
salgada existência

A vida por um salário
salexistência

O sal da terra
salga-nos os ossos.

Wanderlino Teixeira Leite Netto


Certos guardados

Numa prateleira, abrigo a compoteira
que minha mãe ganhou em suas núpcias.
Tem cores múltiplas e uns motivos chineses.
Guardo nela um chumaço de saudade, cacos de vida,
um certo abraço, uma foto esmaecida, guloseimas.
Algumas vezes, pequenas teimas
e uma pálida esperança que trago comigo da mais tenra idade.
Também um sonho que persigo desde antigamente.
Afora uma lembrança impertinente que não vai embora.

Sandro Rebel

  
O fardo maior

Dos escaninhos da alma a gente leva,
para a luz ou para a treva, não se sabe,
tudo quanto em nós se acabe
com a hora derradeira
desta vida passageira.
Toda emoção que sentimos,
toda dor que consumimos,
o bem e o mal que fizemos,
os erros que cometemos.
Tudo, enfim, que nos afora
tivemos e concebemos,
tudo vai conosco embora,
buscando a felicidade
de uma doce eternidade.
Mas, em toda essa bagagem
essa última viagem
nada pesa tanto quanto
a saudade que levamos
da vida que aqui deixamos.

Renato Augusto Farias de Carvalho


Fez frio essa noite

Porque um azul-marinho simulador
Desenfeitou a espera
De um fingidor antigo...

Fez frio. Esse de amortecer
A mucosa,
Cama velha sem respaldo,
Madrugada anárquica, meio tísica,
Sem o nosso regaço plural.

Frio de braço singular.
Puro gelo de pranto remoto
Ex-voto
Paralisado inútil,
Sem amor.

Fez muito frio.


 

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A crônica derradeira de Vera de Vives


Na postagem de hoje, não saberei me delongar. Vera de Vives foi uma escritora que não precisou de mais do que duas obras para se fazer célebre: O homem fluminense e Descobertas e extravios. Convivemos pouco, mas recebi dela o apoio essencial em uma hora decisiva. A postagem de hoje é preito de reconhecimento e gratidão:





“QUE EU SEJA na morte em repouso. E possam rosas vir de meus lábios e de meus olhos a luz dos mortos, fosforescência. 
PEÇO A SOBREVIVÊNCIA de rebrotar do chão como uma planta. Que eu seja contigo na relva que pisares, pois será meu corpo, decomposto e renascido.
PEÇO O CONFORTO de pensar que te hei querido, muito e muito, muito e sempre, como às coisas mais amadas e mais queridas.
QUE DURMA SOB minhas pálpebras descidas a saudade longa das paisagens conhecidas; e que o amor de quantos hei amado durma comigo, como em um ninho, dentro de meu coração parado.”

(VIVES, Vera de. Na morte. In: Niterói de Badezir. Niterói: s/ed., 2011. p.127)


Vera de Vives, perfil segundo Luís Antônio Pimentel


                                                                                                                                  Vera de Vives
                                                                                                                                    1925 - 2011

VERA DE VIVES, Bach. em Direito, prof., jornal., ensaísta, cronista, escritora, folclorista, filha da profa. Olga Bouchaud Lopes da Cruz, nasceu em Botafogo, no Rio de Janeiro, em jun. 1925. Fez os estudos prim. No Col. Santo Amaro, de irmãos beneditinos , e os secund. no Col. Sion, de freiras francesas. Aos 17 anos ingressou no c. de Letras Neolatinas da Fac. de Filosofia da PUC-RJ, e aos 21 na Fac. de Direito da mesma univ. No jornal O Mundo teve, aos 22 anos, sua primeira experiência no jornalismo assinando coluna sobre alunos jurídicos. Casada com Jorge Sinito de Vives, arquiteto, com ele viajou para a França, onde graças a uma bolsa de estudos, concedida pelo Governo francês como prêmio pelo primeiro lugar obtido em prova realizada pela embaixada daquele país, frequentou a Sorbonne, concluindo c. de língua e literatura francesas destinado a professores de francês no estrangeiro.
Nascidas suas filhas, a hoje médica Dra. Miriam Sinito de Vives, e Ana Elisa, hoje doutora em Física pela USP, dedicou-se a elas e ao lar por alguns anos. Nesse período prestou concurso para Assist. Jurídico do BNDES, tendo sido classificada em 14º lugar. Mas não assumiu o cargo por entender que as filhas, pequenas, precisavam dela. Durante esses anos escreveu para Rádio MEC histórias infantis, radiofonizadas em programas dirigidos por Geny Marcondes. Delas se originou o livro Histórias que o vento escreve publicado pela Edit. do Brasil (SP), em 1954. Em 1958, a Edit. Vozes escolheu, para a Coleção Feliz Idade, dois textos de sua autoria – A planta d’ Água e O dia do Arco-íris. Também em 1958 ingressou no magistério, regendo turmas de francês no Liceu Nilo Peçanha, em Niterói, até 1975. Entre 1961 e 1975, lecionou português e francês no Col. Pedro II e foi nomeada para o Cons. De Cultura do RJ. Para voltar ao jornalismo, publicou coluna semanal em O Itaboraiense (1961-62). Neste último ano iniciou colaboração em O Flum., a convite de Alberto Francisco Torres. Como cronista diária, criou o “Diário sem data”. Nos textos que essa coluna veiculava pôde expressar, com plena liberdade quanto aos temas escolhidos, sua ligação com o mundo e o cotidiano, prerrogativa que lhe foi assegurada até 1992 – em 30 anos de coluna assinada. Em 67 e 68 ocupou a Editora de Educação, também em O Flum. Entre 1973 e 1975 exerceu a assessoria de imprensa do Depart. Estadual de Ensino Médio da SEEC-RJ. Seleção de Crônicas do “Diário sem data” resultou no livro Niterói de Badezir, edição da autora, publicado em 1967. Com a fusão RJ/GB foi lotada no Dapart. Estadual de Cultura onde, sob direção de Paulo Afonso Grisoli, participou do programa de interiorização da cultura – os Pacotes Culturais – que percorriam os municípios levando música, dança e teatro eruditos, associados à apresentações de manifestações de cultura popular, sempre com participação de bandas civis locais. Dentro dessa programação organizou e apresentou o I Encontro de Bandas de Músicas Civis que reuniu 71 bandas. Os Encontros mantiveram-se vivos por anos, servindo eficazmente à revitalização das corporações musicais e encontrando êmulos em diversos Estados brasileiros. O Encontro de Folias de Reis que organizou e realizou pela primeira vez em 1975, no município de Duas Barras, perenizou-se igualmente, e se reúne todos os anos, em janeiro, algumas dezenas de folias, em presença de público cada vez mais numeroso. Para o Depart. Estadual de Cultura programou ainda, e realizou, em 1976 e 1977, pesquisa sobre o artesanato tradicional e o folclore flum., abrangendo 17 mun., representativos da realidade cultural e geográfica do Estado. Foram gravados depoimentos dos artesãos e praticantes dos folguedos, e fotografados, tanto os depoentes quanto as manifestações folclóricas. Nessa empreitada contou com a colaboração de Luís Antônio Pimentel, Jorge Sinito de Vives e Zalmir Gonçalves que, como fotógrafos, fixaram a memória de um Estado surpreendente para os próprios fluminenses e desconhecido para a maioria dos brasileiros. Os dados recolhidos em pesquisa resultaram no livro O Homem Fluminense, editado em 1978 pela fundação Estadual de Museus. Durante sua elaboração atuou como Diretora-Adjunta do Museu de Artes e Tradições Populares. Quanto aos objetos recolhidos durante a pesquisa, testemunhos concretos de artesanato tradicional fluminense, foram reunidos na exposição As Mãos do Povo apresentada em Niterói, no mesmo museu. A mostra circulou, depois, por vários municípios. Aposentando-se do serviço público manteve atividade jornalística e iniciou produção literária, com o romance Descobertas e extravios, 1997, história baseada na lenda fluminense do Mão de Luva. (...) a aposentadoria a afastou de seu convívio com Niterói: mas continua a sentir-se verdadeira niteroiense, membro das Acad. Flum. e Nit. de Letras, e cidadã nit. honorária, além de detentora da Comenda Arariboia.



(Verbete: Vera de Vives. In: PIMENTEL, Luís Antônio. Obras Reunidas – Enciclopédia de Niterói. Vol. 1. Niterói: Niterói Livros, 2004. pp. 255-256.)