sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Gracinda Rosa da Costa transformando adversidade em prosa (ou verso).


Quando é que a adversidade se transforma em prosa (ou verso)? Resposta: quando um revés, pelas vias do verbo, se faz reverso. Um exemplo disso? O conto O relógio do hospital, de Graciliano Ramos. Um outro? a crônica Uma cadeira de rodas?, de Gracinda Rosa da Costa:


    CAMARGO, Iberê. Tudo te é falso e inútil.
Coleção Maria Coussirat Camargo: Fundação Iberê Camargo, 1991.
Óleo sobre tela, 155 x 200cm. (Foto: Fabio Del Rey).



Uma cadeira de rodas?


                                                                                           Gracinda Rosa  
                                                                                                                
A ambulância percorreu a curta distância entre o hospital e meu edifício com a sirene anunciando a sua passagem. Fui conduzida na maca até a sala do meu apartamento, onde me esperava a cadeira de rodas. Deveria ocupá-la por alguns meses, segundo as prescrições do cirurgião que se encarregara de restaurar meu fêmur, vítima de uma fratura múltipla, na queda que sofri em uma esquina perto de onde moro.
Os enfermeiros me transferiram da maca para a cadeira de rodas e se foram.
Eu inaugurava, ali, uma nova realidade em minha vida. Senti logo grande simpatia pela cadeira que, emprestada por amigos, permitiria minha locomoção pela casa durante o período de recuperação. Por dois meses não poderia encostar o pé direito no chão. Dependia de alguém que me conduzisse para lá e para cá e que cuidasse de todos os afazeres domésticos, pois estava com sérias limitações que me impediam de levar uma vida normal.
Encarando a ideia de que estaria, durante um bom tempo, presa à cadeira de rodas, com sérias restrições às minhas atividades, não me deixei abater. Lembrei-me do Monteiro Lobato que, em 1941, durante o movimento que ficou conhecido como o “escândalo do petróleo”, foi preso e mantido em detenção preventiva, pois estava sendo acusado “pelo crime de escrever uma carta sincera ao Presidente Vargas”. Ele confessa que sempre havia sonhado com uma reclusão que lhe permitisse ficar a sós consigo mesmo, para meditar sobre o livro de Walter Piktin – A Short Introduction to the History of Human Stupidity. Aproveitou, também, para dedicar-se à tradução do Kim, do Kipling.
Condenada à vida de cadeirante, durante algum tempo, por que não aproveitar a oportunidade para pôr em dia minhas leituras e escritas? De início, apenas li. Desfilaram sob meus olhos páginas de Rosamunde Pilcher, Miguel de Cervantes, Gustave Flaubert, João Ubaldo Ribeiro, José Saramago, Inês Pedrosa, Pascal Mercier, Ney Eichler Cardoso, Dênis de Moraes, Machado de Assis, Kahlmeyer-Mertens, Maria José Dupré, Ondjaki, Lya Luft, Antônio Skármeta, Dalcídio Jurandir, etc. Logo que tive acesso ao computador, tratei de digitar um livro meu, que estava quase concluído, ainda na sua fase manuscrita. Sem as muitas saídas para a Academia e diversos eventos, tive tempo para terminá-lo e concluir sua digitação, sem pressa. Lá estão os originais em uma pasta, devidamente rotulada, e acomodada na estante, junto a outros escritos inéditos.
Voltei-me, depois, para um novo livro, cujo roteiro já estava esboçado, e nele trabalhei por algum tempo.
As visitas e telefonemas dos amigos tornaram mais amenos aqueles dias de convalescença. Dois meses depois de minha cirurgia, pude colocar os pés no chão e, no mês seguinte, voltei a caminhar, com ajuda do andador e da bengala amiga. Eis que esta liberdade permitiu que me dedicasse a muitos outros afazeres. Além das costuras e arrumações, já podia sair para as compras ou idas ao banco. Voltei à Academia (ANL) e aos “Escritores ao Ar Livro”. De compromisso em compromisso, o tempo começou a ficar escasso. Inspirei-me, então, no Saramago que, na última etapa de sua vida, tinha permissão de trabalhar apenas uma página por dia, não abandonando, portanto o seu papel de escritor. Tomei como obrigação escrever essa página diária e, em breve, espero estar com mais um livro concluído.
Não chegarei ao extremo do Lobato que agradece ao General responsável pela sua prisão pelos “tantos deliciosos e inesquecíveis dias passados na Casa de Detenção...”, mas seria ingratidão não registrar o valioso papel que minha cadeira de rodas representou nesse complicado período se minha vida, dando-me o ensejo de tantas leituras e de um bom avanço nas minhas escritas.

Obra de arte pintada por cadeirantes utilizando as próprias rodas das cadeiras





Divulgação Cultural
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domingo, 11 de setembro de 2011

Poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)





Ao Fernando de Aviz

Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.
 Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
 subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espirito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

 


Divulgação Cultural
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