quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Ler, escrever e caricaturar: sobre Nietzsche e a "moda Nietzsche"



Retrado de Nietzsche. Óleo sobre tela por Edward Munch (1906)



Já faz algum tempo que o nome “Nietzsche” se tornou uma referência do senso comum à erudição e ao comportamento de scholar. Daí, se se quer ostentar uma aparência pretensiosamente intelectual, basta citar Nietzsche em uma circunstância social ou trazer o livro do autor debaixo do braço, enquanto em que se faz cara de desdém frente ao mundo todo (para se ter ideia, até as telenovelas têm utilizado as máximas de Nietzsche para causar efeito).
Sim, vivemos uma época em que grassa um nietzscheanismo jovial, classe-média burguesa e ignorante do que estaria em jogo na obra deste autor. Uma época de leitores que, por terem lido as orelhas do Assim falou Zaratustra, se acham os próprios “super-homens” (Übermenschen) descritos no livro, passam a se arrogar possuidores de uma atitude sempre afirmativa perante a vida, a se julgar os fortes que prevalecem sobre os fracos ressentidos (como se a existência humana nos permitisse ser fortes incondicionalmente) e que chutam cachorro na rua só porque não gostaram da cor.
Curioso é que o próprio Nietzsche, sabia do risco que as coisas que escrevia poderiam suscitar tais comportamentos, é isso que se constata quando na obra Ecce Homo ele nos diz: “Conheço minha sina. Algum dia, meu nome estará ligado a qualquer coisa enorme – a uma crise como nunca houve na terra, ao mais profundo conflito de consciência, a uma decisão equivocada contra tudo aquilo que, até aqui, se acreditou, se estimulou, se santificou. Eu não sou um homem, sou dinamite”. Essas linhas, escritas em 1888 (após se referirem a crises niilistas do valor e a ascensão e queda de regimes desumanos como o nazismo) poderiam ser pensada a propósito disso que, aqui, chamamos de “a moda Nietzsche”.
Prudente que era, o próprio filósofo colocara o antídoto para essas afetações em suas obras. Um desses “antídotos” é o texto Do ler de do escrever, fragmento que pode ser lido como a posição de Nietzsche sobre o ato de compor textos (neste caso, interessante ao público literário frequentador de Literatura-Vivência), bem como ocasião para pensar o que significa ler um filósofo como Nietzsche.
Embora o texto seja corrido, optamos por ilustrá-lo entremeando-o com caricaturas do filósofo. Tentativa de mostrar o quanto o filósofo era caricato em suas ideias, ou o esforço por mostrar que é preciso caricaturar uma versão “encurtada” de Nietzsche para liberá-lo aos bons leitores? (Leitor, responda você mesmo).

Ao fim, ainda há um vídeo de Paulo Autran dizendo Fernando Pessoa e outro com algumas das últimas cenas de Nietzsche antes de sua morte no ano de 1900 (este segundo pouco recomendado para pessoas sensíveis). Atenção, também, para a novíssima reedição dos diálogos de Platão (desta vez bilíngue com tradução de Carlos Alberto Nunes, organização de Jaa Torrano e aparato crítico de Victor Pinheiro).



Do ler e do escrever




                                                                                                                      Friedrich Nietzsche

De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito.


Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos os que lêem por desfastio.
Aquele que conhece o leitor nada mais faz pelo leitor. Mais um século de leitores – e até o espírito estará fedendo.


Que toda a gente tenha o direito de aprender a ler, estraga, a longo prazo, não somente o escrever, senão, também, o pensar.
Outrora, o espírito era Deus, depois, tornou-se homem e, agora, ainda acaba tornando-se plebe.
Aquele que escreve em sangue e máximas não quer ser lido, mas aprendido de cor.


Na montanha, o caminho mais curto é de cume a cume; para isso, porém, precisa-se de pernas cumpridas. Máximas, cumpre que sejam cumes; e aqueles aos quais são ditas devem ser altos e fortes.
O ar rarefeito e puro, a vizinhança do perigo e o espírito imbuído de uma alegria. malvadez: coisas que combinam bem uma com a outra.


Quero ter duendes ao meu redor, porque sou corajoso. A coragem que afugenta os fantasmas cria seus próprios duendes: a coragem quer rir.


Eu já não sinto do mesmo modo que vós: essa nuvem que vejo abaixo de mim, essa coisa negra e pesada – é, justamente, a vossa nuvem de temporal.
Vós olhais para cima, quando aspirais e elevar-nos. E eu olho para baixo, porque já me elevei.
Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-me elevado?



Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras.
Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos – assim nos quer a sabedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.



Dizes: “A vida é dura de suportar”. Mas para que teríeis, de manhã, a vossa altivez e, de noite, a vossa submissão?
A vida é dura de suportar; mas, por favor, não vos façais de tão delicados! Não passamos, todos juntos, de umas lindas bestas de carga.


Que temos em comum com o botão de rosa, que estremece ao sentir sobre o corpo uma gota de orvalho?
É verdade: amamos a vida, porque estamos acostumados não à vida, mas a amar.
Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre, também, alguma razão na loucura.


E também a mim, que sou bondoso com a vida, parece-me que as borboletas e as bolhas de sabão e o que mais do gênero há entre homens, são as que melhor conhecem a felicidade.
Ver voejar essas alminhas loucas, leves e graciosas induz Zaratustra a chorar e a cantar.



Eu acreditaria somente num Deus que soubesse dançar.
E, quando vi o meu Demônio, achei-o sério, metódico, profundo, solene: era meu espírito de gravidade – a causa pela qual todas as coisas caem.
Não é com a ira que se mata, mas com o riso. Eia, pois, vamos matar o espírito de gravidade!
Aprendi a caminhar; desde então, gosto de correr. Aprendi a voar; desde então, não preciso que me empurrem, para sair do lugar.



Agora estou leve; agora, vôo; agora, vejo-me debaixo de mim mesmo; agora um deus dança dentro de mim.

Assim falou Zaraustra.



(NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. 7ª. Ed. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p.56-58.)





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domingo, 11 de dezembro de 2011

"La vie littéraire", por Xavier Placer





La vie littéraire

                                                                                                                                    Xavier Placer
Há, ao vivo -
O escrevinhador esforçado.
O beletrista-sorriso.
O neo-liberal sem rubor.
O polígrafo grisalho.
O figurão emblemático.
O equivocado sublime.
O barbudo deslumbrado.
O plumífero esvoaçante.
O pornógrafo de berço.
O ensaístazinho up-to-date.
O transcriador em órbita.
As duplas dinâmicas.
Os avinagrados.
O carreirista que deu certo.
O predador desinibido.
O destilador de essências.
O mártir do calvário do estilo.
A literata fisiológica.
O figurante de todas as fotos.
Outros.
− E, claro, o Escritor e o Leitor,

Graças a Deus.

(PLACER, Xavier. Mini prosas. Niterói: Letras fluminense, 1991. p.21)





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