quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

"Arlete, Arlete..." Conto de Wanderlino Teixeira Leite Netto





Arlete, Arlete...



                                                                                                      Wanderlino Teixeira Leite Netto

Não considero apenas a demolidora frase de Arlete, meu retorno intempestivo, o óleo no asfalto, a árvore à beira da estrada. Há um sem-número de outros cacos formando este mosaico. Afinal, nada acontece por acaso nem deve ser olhado isoladamente. A árvore, por exemplo. Quando a plantaram, semente ainda, já estava destinada a me proporcionar este momento paradoxal, misto de agonia e paz. Quantas vezes passei por ela, em idas e vindas, sem jamais imaginar tal desfecho. Impávida no descampado, copa farta de galhos e folhas, tronco robusto, solidamente fincada ao solo por uma teia de raízes, esperou-me pacientemente. Se Arlete não me tivesse dito o que disse, a esta hora eu estaria ao seu lado. Se as palavras inexistissem, tudo teria sido diferente entre mim e Arlete. Mas há o verbo, maldito seja. Mais um pouco, a árvore ficaria para trás e um gramado razoavelmente regular acolheria o automóvel quando, ziguezagueante, ele deixou a estrada. Minha decisão de abandonar a casa pela madrugada, sob o impacto do comentário ferino de Arlete, sem dúvida contribuiu para o acontecido. Não fosse o lusco-fusco do amanhecer, com certeza eu teria percebido a mancha amarelada no asfalto, óleo recém-trocado, conforme pude ouvir de alguém neste atropelo de vozes aflitas: “Meu Deus, que horror!”, “Afaste as crianças, leve daqui as crianças”. “O celular... o celular...”Ai, meu Deus!” “Alguém sabe o número? ” Mais uns centímetros, temo, a lâmina espetada em meu peito tornar-se-á mortífera. Essa gente há de estranhar meu sorriso. Acho graça da mesóclise. “O momento não se presta a firulas gramaticais”, Arlete diria se aqui estivesse e lhe fosse possível intrometer-se em meu pensamento. Arlete, Arlete... Da cintura para baixo, sinto meu corpo amortecido. Agora sim, querida Arlete, com certeza já não sou o mesmo. Rompendo o último fio a nos unir, ela dissera isso exatamente, logo após eu havê-la feito gozar como nunca. De início pareceu-me zombaria, mas aqui, preso às ferragens, lembro-me de que o olhar de Arlete se mostrava opaco. Naquele instante, desfizemos nosso pacto de convivência. Sinto cheiro de sangue, de resina e do perfume favorito de Arlete. “Ligou para os bombeiros?” “Deus do céu!” “Pra Polícia Rodoviária, ligou?” “Já não lhe disse para afastar as crianças?” Estranhamente, nunca estive tão lúcido. Meu relacionamento com Arlete, muitas vezes nebuloso, se aclarou por inteiro. Não há dúvida, foram elas, as palavras, as responsáveis pelos abismos, pelos tantos desencontros. Desde o primeiro instante, Arlete delas se valeu para fustigar-me. Qual exímio espadachim, ela sempre soube o momento certo de investir. E foram muitos lanhos, muitas cicatrizes nesses dez anos de estocadas. A lâmina em meu peito materializa o golpe derradeiro. Arlete, Arlete... Nossos momentos felizes foram silenciosos. Instintivamente, estabelecemos um pacto de convivência repleto de olhares. Os olhos de Arlete, ao contrário de seus lábios, nutriam-me o ego. “Você já não é o mesmo”. Quando me lançou esse dardo, ainda extenuada pelo gozo, busquei em seus olhos o desmentido, mas vi uma nuvem neles. Os patrulheiros chegaram primeiro. Ouço o freio de suas viaturas, as batidas das portas, os passos ligeiros. Conheci Arlete berrando palavras de ordem numa passeata. Saídas de sua boca, pareciam punhais, setas certeiras, inteiramente apropriadas à ocasião. Com o tempo, descobri que as armas verbais de Arlete independiam de manifestações cívicas. Arlete, Arlete... Relembro sua sentença, seu olhar opaco, minha súbita decisão de abandonar a casa de campo madrugada ainda. As luzes difusas do amanhecer são enganosas, camuflam coisas, mostram o inexistente. Havia óleo na pista, vi um remendo no asfalto. Num instante, tudo se deu e aqui estou, entre as ferragens, uma lâmina-frase espetada no peito. Agora os bombeiros: “Isolem a área, tragam a motosserra, tomem cuidado, há uma lâmina no peito da vítima”. Veloz, meu pensamento viaja. Vai até quando conheci Arlete, mas não passa daí. Se tento ir além, ele retorna ao momento em que deixei a casa de campo. Quando quis saber as razões de ela esgrimir com palavras, Arlete pareceu meditar, mas a resposta veio vaga: “Talvez seja atávico...” Nesses anos todos, Arlete nunca me afagou com palavras, só seus olhos me fizeram carinho. Quando deles mais precisei, eles não brilharam. Passo a crer na falsidade deles. Olhos enganosos, plenos de desfaçatez. Sempre exerceram o dom de iludir. Acreditei neles, neles depositei todas as fichas, meu cacife de esperanças. Cúmplices de Arlete, bancaram o jogo e me deixaram de mãos vazias. Ai, essa pontada no peito e a sensação de haver um filete a escorrer dentro de mim. O barulho da motosserra rasgando as chapas metálicas, vozes distantes, imagens difusas. Por fim, uma névoa e um rosto de mulher. Cale-se, Arlete, e afaste de mim esse olhar.

(NETTO, Wanderlino Teixeira Leite. Arlete, Arlete. In: Beijo de língua. Rio de Janeiro: Editoração, 2007)





Divulgação Cultural
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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O poeta Marco Aurélio Mello Reis segundo Emmanuel de Macedo Soares




Um poeta de Niterói


                                                               Emmanuel de Macedo Soares

Marco Aurélio Mello Reis é um poeta de Niterói, um niteroiense da Mem de Sá, que estudou no Liceu, curtiu a praça da República e a praia de Icaraí, andou nas barcas da Cantareira e depois foi percorrer os caminhos do mundo, à procura de um caminho.
Encontrou a poesia, que na incoerência de todas as buscas acaba sendo a única coerência de todos os achados.
Não a tece para ser exibida, mas para ser presença nitidamente demarcada com linhas fortes na nossa literatura contemporânea, e esse espaço já lhe foi assegurado pelo juízo dos mestres, de Tristão de Ataíde a Pedro Nava, de Dom Marcos Barbosa a Antônio Carlos Vilaça, de Drummond a Odylo Costa, filho.
E não se trata de manifestações reticentes ou gentis de poeta para poeta, mas de afirmativas que muito concretamente reconhecem e proclamam a perícia e sensibilidade de Marco Aurélio no trato da palavra, de cada uma delas.
Às vezes chega a fazê-lo de forma tão propositadamente lúdica que joga de repente no verso uns jardineiros topiários, umas sáxeas telas, umas serranas saxifragáceas ou umas magias seminíferas, simplesmente para vê-lo resistir ao desafio e continuar fluindo livre e solto, sem perda do metro ou da beleza.
Coisa de mestre que bem conhece cada peça que manipula, e não foi à toa que o bom e indispensável Drummond, tão avaro no dizer e mais ainda no elogiar, se permitiu abrir exceção para este niteroiense da Mem de Sá:

Estou dividido entre duas emoções: a de quem recebe um fino presente e a de quem imerge numa corrente de poesia de grande pureza, em que tudo é essencial e nada se mostra com ostentação, brilho, rumor. O tom velado, mas seguro, de cada poema, lembra música surdinada que se dirige mais à alma que aos ouvidos. E tudo se passa num diálogo discretíssimo entre poeta e leitor, como se aquele não quisesse ser escutado por mais ninguém, e só na confidência se manifestasse toda a sua riqueza. Guardei uma profunda e delicada impressão desses poemas reunidos, de alguém que não aspira à popularidade, pois se compraz no simples e constante exercício da poesia, sem esquecer, antes celebrando-a, e amando-a, a obra de outros poetas.

Não há precisão de mais dizer, e aqui vos deixo com um pouco da poesia de Marco Aurélio Mello Reis.


SONETINHO DO AMOR TECELÃO

Tenho um amor para dar,
amor tão forte e tão puro,
que certo ainda o darei
àquela que não procuro

Tenho um amor para dar,
dentro do peito tecido,
que há de ser como uma rede
de fio fino e macio,

para nele se enredar
o amor que um dia vier
como a surpresa da vida.

Meu amor, como um tear,
tece o fio do viver
nesse fio de esperar...



O MEU MENINO

Só um menino me importa,
entre todos os meninos:
não aquele que eu não tive,
mas aquele que eu não fui.

Sentir de nada adianta.
O que adiante é sentir-se.
E eu sinto, mas não me sinto
vendo os meninos que brincam.

Eis o tempo a confundir-se,
na pergunta do que sou:
sou o menino que não fui
no menino que ainda sou.



VISÃO

Surpresa para o olhar,
tua visão visitou-me:
levei tempo a pensar
no que o tempo levou-me.

Mesmo o jeito de estar
em ti, assim como estou-me.
Mesmo o ar de sonhar
de quando mais amou-me.

Mas como foi não vi
claro teu rosto escuro
de não estar aqui.

E estava eu no jardim
e pensava no puro
antigamente mim.



ORAÇÃO POR JOAQUIM CARDOZO

Senhor, o servo Joaquim
andou no mundo a buscar
arco ou poema que unisse
vossos mundos paralelos.

Andou no mundo a medir
as fundadas estruturas
que permitissem nas formas
(nas formas, como na vida)

o convívio dos contrários:
firme amarração no verso,
gesto de asa no concreto.

Senhor, o servo Joaquim
alto poeta e engenheiro
é homem de universais
e nordestinas virtudes.

Se andou no mundo tão só,
teve o coração varado
pela sorte de seu povo...
Uma grande dor sentiu!

Senhor, inclinai a fronte,
e ouvi atento esta prece,
agora que se aproxima
a hora entre todas dúbia
de vosso servo Joaquim
noitemente amanhecer.