sábado, 9 de junho de 2012

Sobre sábios, arbítrios e borboletas azuis: Luiz Calheiros


Entre a singeleza das parábolas orientais e o realismo dramático de Giacomo Puccini, a “butterfly” fica, hoje, a cargo de Luiz Calheiros.
 
Bom fim de semana:







                                                                                                                           Luiz Calheiros

Conto-lhes uma historinha, de autor desconhecido. É provável que a conheçam. Chama-se: “A borboleta azul”.
Havia um homem muito culto capaz de responder sem erro a qualquer pergunta. Uma garota sagaz resolveu inventar certa situação, armada de tal modo que ele não lograsse acertar. Escondendo na mão uma borboleta azul, indagaria ao mestre se ela se encontrava viva ou morta. Se ele dissesse estar morta, a menina a deixaria voar. Provaria, assim, o erro do sábio. Se a resposta, ao contrário, fosse estar viva, a menina a apertaria, matando-a. Comprovaria, então, que aquele sábio se enganara. Desta maneira, qualquer que fosse a sua resposta, ele estaria errando.
Certa de que criara um inteligente artifício, a jovem previa derrubar a fama do homem, considerado, até então, verdadeiro gênio.  Acercando-se dele na presença de várias pessoas, perguntou:
– Seu sábio, eu estou aqui com uma borboleta azul na mão. Será que o senhor pode me dizer se ela está viva ou morta?
Calmamente, o homem sorriu e respondeu:
– Depende de você. Ela está em suas mãos... 
Assim, dizem, é a existência humana. Pousam em nossas mãos muitas borboletas azuis. Podemos soltá-las... ou retê-las. Cabe-nos escolher o que fazer com elas. Somos livres para decidir. O arbítrio nos pertence.  Ao longo dos anos, liberamos ou preservamos várias delas.
Mas essas borboletas azuis que nos chegam, de onde procedem?  São elas mesmas que resolvem aonde ir?  É de cada uma o desejo de procurar o próprio abrigo, arriscando-se à decisão de serem esmagadas por outrem?
As oportunidades, com as quais a vida nos brinda,  são muitas vezes prazerosas. Confiáveis. Estão, suave e silenciosamente, escondidas entre nossos dedos.  Estas, com carinho,  merecem  ser acolhidas. Aceitam o calor dos afetos.  Permanecem  conosco. Sentem-se protegidas.  Mas, sobretudo,  dependem de nossas escolhas.   De  nossas decisões.
Por isso, já  outras –– fugazes, efêmeras, transitivas – ,  evitamos prendê-las. Partem. São asas saídas do nosso aconchego.  Talvez busquem pousar em  mãos alheias.  Ou prefiram esvoaçar no indefinido espaço da vida.  Algumas  nos alcançam e adejam por ordem superior do Destino. São também azuis. Encantam-nos com seu colorido.
Não nos compete, contudo, torná-las  livres ou impedi-las de voar.
Cumpre-nos, simplesmente, submeter nossa existência à mágica força de seus ditames. Sempre rigorosos. Inflexíveis. São acontecimentos que fazem sentir o quanto é penoso afrontar o que nos é destinado: dúvidas, inquietações, medos e inseguranças... Contudo, também, certas  alegrias...
Assim, perguntamos: em que medida, nós somos agidos ou agentes dos atos praticados? Esta,  a grande questão bipolar: o Livre Arbítrio ou  o Destino? Aquele, submisso à nossa vontade, ingenuamente soberana. Este,  implacável dominador dos desejos, refreando nossa falsa liberdade. Ambos, valem-se das cativantes borboletas azuis, frágeis símbolos das utopias humanas.  E nós, eternos hospedeiros de seus sonhos.
Por acaso, o sábio da reflexiva história, que lhes contei, conseguiria  indicar, com inconteste certeza, qual das situações existenciais, a verdadeira?



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quarta-feira, 6 de junho de 2012

"Kahlmeyer-Mertens nas vozes ressonantes de Umberto Eco", ensaio de Dalma Nascimento


Não há quem não fique contente (e até lisonjeado) com uma crítica favorável a um trabalho. A alegria aumenta exponencialmente quando reconhecimento e apreciação vêm de alguém como a Professora Dalma Nascimento. Professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro – RJ, Doutora em Teoria Literária e membro do Pen Club do Brasil. A intelectual assistiu minha conferência comemorativa dos oitenta anos de Umberto Eco e, dias depois, enviou-me um ensaio apreciando aquela fala.
Recebi o texto como um presente – este ofertado por uma figura cuja capacidade e inteligência só não são maiores do que sua generosidade –. Ao publicá-lo em Literatura-Vivência, longe de um ato de cabotinismo, desejo patentear o agradecimento cordial à professora Dalma declarando a satisfação de tê-la como uma afinidade eletiva.






1 A performance do conferencista e a relevância do autor  

Com a peculiar erudição que o caracteriza e o fluente domínio do tema, o filósofo e professor Roberto Kahlmeyer-Mertens proferiu na última semana, no Cenáculo Fluminense de História e Letras, a conferência “Os ecos de um intelectual Plural: Umberto Eco faz 80 anos”.  Já no jogo das palavras do titulo, o expositor provocou interesse de serem conhecidas as ressonâncias desse escritor multifacetado,  nascido em Alexandria (no Piemonte italiano) em 5 de janeiro de 1932.
Assim, o  pensamento polissêmico de Eco foi sendo analisado  por Kahlmeyer na sua fala objetiva, metódica, produtora de sentidos, fruto de aguda investigação e  de segurança epistemológica. Demonstrou pesquisa, sem, contudo, se apoiar em textos previamente  escritos,  iniciando  a exposição pela biografia do autor. Contextualizou-o, enfatizando os reflexos existenciais na produção das suas obras.  Referiu-se à enciclopédica cultura de Eco, um ser, ao mesmo tempo,  filósofo, historiador, semiólogo, linguísta, bibliógrafo, ensaísta   e romancista.
 Transitando em tantos horizontes do intelecto, ele  doutorou-se em Turim orientado por Luigi Pareyson, E, ao   teorizar  na sua  tese  o pensamento de Tomás de Aquino,  o ideário do mestre tomista o seduziu.  Voltou-se, ainda mais,   para o  universo e a estética medievais.  sendo este período o pilar temporal  preferido das  suas  construções literárias  Porém, antes de tornar-se romancista  de sucesso, triunfou no magistério. Professor convidado em Yale, Harvard, Collège de France, lecionou também em Turim, Florença e Milão, aposentando-se, na Universidade de Bolonha, no nível máximo de titular.
 Apesar dos múltiplos caminhos em philia dialógica, ou seja, em fraterna interlocução, dois grandes vetores nortearam-lhe o trajeto. Primeiro, a escrita teórico-ensaística, comprometida com a Semiótica e com os avanços da cultura de massa. Depois, emerge a   ficção, através da qual Umberto Eco se tornou mais conhecido pelo grande  público, embora estes dois veios sempre se harmonizassem confluentes.  


2 Etimologias  e os ensaios teórico-semióticos  de Eco

Antes de aprofundar a primeira vertente das produções do autor, Kahlmeyer investigou o  significado do termo Semiótica, questão, aliás, de título divergente (Semiótica ou Semiologia?) conforme for nomeada por teóricos europeus ou norte-americanos. Sem, contudo, aludir a tais irrelevantes polêmicas,  o conferencista esclareceu que Semiótica, do grego semiotiké, significa “ótica dos sinais”, isto é, “ter olhos de ver signos ou sinais”. Então a  teoria semiótica  “permite  compreender sinais e desvendar suas referências aos códigos”. 
Clarificando ainda mais o assunto, Kahlmeyer foi ao étimo da palavra Teoria, advinda de Theorein (fixar), decompondo-a em Theos + Horaus (olhar dos deuses), o que demonstra ser ela, a Teoria, uma visão privilegiada do mundo. Daí, apontar para  um “contemplar”, um “ver” profundo ao interpretar sinais. Tal contemplação  permite criar novos códigos, entender e fazer a exegese das culturas que estão emergindo. Conceito este que,  descoberto por Umberto Eco no Ensaio sobre o entendimento humano, de Locke,  foi  trazido à atualidade e influenciou as filosofias da linguagem e o discurso do imaginário.
No filão de ensaios com teorias semióticas, o pensador italiano publicou trinta e três livros. Numa batalha de ideias, o primeiro foi a  desveladora Obra aberta, abrindo campos de possibilidades à interpretação do literário. Em 1964, surgiu o tomo: Apocalípticos e integrados.  Ali, Eco focaliza a problemática  da cultura de massa, analisa a estética do mau gosto (o Kitsch), discute  mitos e símbolos massificadores da dinâmica contemporânea. Consigna também o surgimento  de outras estéticas  para atender às carências do consumo. Centra-se  mais  em MacLuhan do que em Adorno.
No movimento semiótico, entre outros livros, publicou A estrutura ausente (1968); As formas do conteúdo (1971); Seis passeios pelos bosques da ficção (1994); Como se faz uma tese (1995), metodologia, útil a alunos; Kant e o ornitorrinco (1997), refutação às categorias kantianas, sendo o ornitorrinco, exceção a regras; Cinco escritos morais (1997) sobre  racismo, alteridade e fascismo. Organizou as coletâneas História da Beleza (2004) e História da Feiúra (2007), esta, com textos que, à moda de Foucault, narram  a história dos interditos, onde o feio se associa ao hostil e ao denegrido. No rápido  panorama teórico ensaístico – tradutor das  novas relações entre o homem e o mundo –,  o erudito expositor mencionou Não contem com o fim do livro (2110), obra  que, segundo ele, será objeto de futuras cogitações  no Cenáculo.


3 As produções romanescas.

Umberto Eco tornou-se  ficcionista  internacional com O nome da rosa, trama eivada de discussões teológicas e filosóficas ambientada num convento medieval. Composta  em 1978-1979, mas lançado  em 1981-1982,  ela é dotada de um Pós-escrito tão precioso quanto  o livro, sobremodo para quem se dedica a este gênero romanesco.  Adaptada   ao cinema por Jean-Jacques Arnaud,  e tendo Sean  Connery e Christian Slater nos papéis principais, a  narrativa  comprova o  valor de produções policiais, de há muito, não mais considerada literatura menor na seara da arte. Enfático, Kahlmeyer sublinhou a importância  estética de  composições detetivescas.
 A Idade Média, já se disse, constitui  marco decisório  na formação intelectual do escritor italiano. Assim, para  montar enredos fidedignos, Eco elabora fichas, emprega clichês, recorre a autores medievais, serve-se de cartografias, de signos iconográficos e de outros traços verídicos – como afiançou o conferencista –visando a  ilustrar a exposição. O escritor deseja transfigurar uma época que lhe seja própria. Kahlmeyer relatou pequenos detalhes, no entanto, relevantes à estrutura textual. Exemplo: o apuro na construção da biblioteca. Para narrá-la, Eco inventou um local arejado, a fim de ela poder ser queimada pela combustão. Deveria expressar a cosmovisão coerente com o momento cultural, ainda que, de maneira ficcionalizada.
A seguir, pela exiguidade do tempo, não se ateve ao romance de 1988, O pêndulo de Foucault. Mas iluminou  outro, A ilha do dia anterior, de 1994, traduzido por Marco Lucchesi. Localizado no polêmico século XVII, o texto se constrói – aliás, marca peculiar de Eco –, com referências  literárias, filosóficas, linguísticas, estéticas, astronômicas, náuticas, bélicas, botânicas, médicas e até com a arte da esgrima. Em que pese a superabundância de desdobramentos oceânicos, a escrita desenha excelente painel daquele segmento  histórico com temas que fagulham a fantasia. Caravelas, travessias, enigmas, espionagem, segredos de estado, guerras, duelos, questões religiosas, amores idealizados são ingredientes romanescos que dão ibope.
 Além de tudo, há a utopia da Ilha Perdida ou Encantada, sonho que mexe com o inconsciente coletivo desde tempos imemoriais. A enigmática terra, na pena literária do escritor, situa-se na  confluência de tempos e espaços, no centésimo-octogésimo meridiano, ou seja, entre o ontem e o hoje. Daí o título, A ilha do dia anterior.  Em meio a tantos saberes, os episódios  configuram-se dúbios  em todos os níveis, o que lhes confere o caráter  dicotomizador e dilacerante da estética maneirista, atuante naquele tempo histórico-estético captado pela escritura moderna de Eco. [1] 
Depois, o Professor Kahlmeyer reportou-se ao Cemitério de Praga, best-seller de agora. Comentou a esquizofrenia  do personagem central, Simone Simonini, o único “inventado” no relato. Ora ele  assume sua  identidade de autêntico falsificador, ora, a outra, a do Abade Dalla Piccola, embora ambos se  ignorem, mas se comuniquem por recados.  Mais um dúplice  golpe de mestre do romancista! Com cenários histórico-culturais e absurdos acontecimentos – verossímeis apenas  na estrutura interna –,  na trama se  dão a ler  conspirações no cemitério de Praga, entre  fatos escabrosos e estranhos, até com alusões aos “Protocolos dos Sábios  do Sião”. Envolve, contudo,  importantes acontecimentos factuais. Lá estão, por exemplo, Garibaldi, Freud, Dumas, o Caso Dreyfus, Charcot, episódios médicos, histerias, hipnoses, jesuítas, maçons, receitas culinárias. Realidade e Irrealidade enlaçadas!  O livro reúne  um pot-pourri diabólico até engaçado, no qual Simonini é visceralmente antissemita, marca do avô,  e,  com alusões abjetas, coprológicas, ele rechaça  várias  raças e sistemas...
            Por não mais  dispor de tempo, o conferencista não se deteve – mas não fez falta! – em  dois romances  expressivos: A misteriosa chama da rainha Loana, e Baudolino. O primeiro conta a vida   de um alfarrabista que  acorda, com a memória perdida, após um acidente vascular cerebral. O segundo, Baudolino, tradução também de Lucchesi, é uma deliciosa  narrativa passada no século XII-XIII, época de  inúmeras transformações na Idade Média Central. Descreve as façanhas de um herói popular bandoleiro, um camponês sonhador erudito, pícaro andarilho numa divertida  farsa burlesca. Por meio dele, Eco repristina lendas ouvidas, na infância em sua terra natal, dando ao personagem o mesmo nome de São Baudolino, o padroeiro da cidade.
            Finda a brilhante conferência, o presidente da entidade, Júlio Vanni,  encerrou a sessão, sendo o porta-voz  da assistência “nos passeios pelos bosques da ficção” e da cultura. Após o banquete do espírito, veio o ágape do corpo: vinhos, salgados e doces sempre servidos naquela Casa Italiana. Porém, os ecos de Eco, sonorizados pela  voz  do conferencia, ficaram ressoando  na memória coletiva...
 Faz-se, portanto, necessário um ciclo sobre o autor, tal o acervo do conferencista.  Porque Roberto Kahlmeyer-Mertens deu-nos uma AULA, na acepção de Barthes, quando este foi introduzido  no Collège de France. 





[1] Quando o livro foi lançado no Brasil, publicamos na Tribuna da Imprensa, caderno cultural (Tribuna Bis)  em 29/ 03 /1995, p. 9,  ampla resenha da obra  A ilha do dia anterior,  com  o título: “A ilha do sonho eterno.  Romance de Umberto Eco formado por labirintos intelectuais’.   Certos  tópicos  de nossa leitura  inserimos no presente texto. 



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terça-feira, 5 de junho de 2012

O que significa ser fluminense? por R. S. Kahlmeyer-Mertens





Ser fluminense é encontrar-se no vão entre quatro pontos, não os marcos cardeais usados nas orientações no espaço ordinário, mas a guanabara, as serras, brejos e restingas quando destes me aproprio. É nessa quadrindade que a vagueza que somos se determina, se perfaz e se afeiçoa. Daí, é necessário dizer que ser fluminense não é voluntária condição; antes, é fruto de uma destinação que faz com que, insensivelmente, nos façamos identidade fluminense ante a diferença abismal, e pertença telúrica antes mesmo de declarações ufanas de vinculação atávica ou de posse de raiz. Assim, nos cultivamos fluminenses no a priori de uma dita “cultura fluminense”, de sorte que toda forma, estilo de vida, visão de mundo, cultura, vínculos e valores já são tardios. Aprendemos o fato de nosso ser com as lições que tomamos dos rios que nos dão o nome de flumen: pendendo das terras altas, eles já são rios desde que margens lhes foram dadas no nascedouro, não importando se formam caudalosas bacias nos planaltos, se, abruptos, quedam de escarpas, ou se, morosos, serpenteiam nos tabuleiros e planícies, todos – Paraíba do Sul, Macaé, Guandu, Piraí, Muriaé, Carangola, Pomba e Paquequer – são fluminenses a caminho da foz.
Testemunhas de cada palmo de nossa província, rios contam sua história nos sedimentos que trazem: memória e potamografia. Descrição do horizonte que somos e temos, de seu aberto, relevo, relatos e legendas... lavando a mataria espessa, o prado e a fazenda, povoados ou urbes, tomam eles o sal de cada solo e a cor que nosso céu empresta. Ser fluminense é, assim, o sincretismo desta fluência, a miscigenação que os primeiros souberam criar: o goitacá que instituiu o sentido de pátria já na origem; bandeirantes lusos e garimpeiros das Minas Gerais na pista faiscante do ouro; o negro, tenaz motor de empreitadas tantas; colonos estrangeiros cujo sangue e modos se imiscuíram aos autóctones, determinando a semblância que temos. Quadratura somos, somos quarenta vezes quatro; somos mais de dezesseis milhões.
Unidos na pluralidade, muitas palavras nos traduzem: Campos dos Goytacazes, Itaguaí, Itaperuna, Niterói, Teresópolis e Vassouras, nomes que ora ou outrora se firmaram por valores próprios, valeriam outros bons de se cantar: Cabo Frio, Duas Barras, São Fidélis, Paraty, Miracema, Cantagalo, Sumidouro, Rio Claro; Saquarema, Itaocara, Porto Real, Barra Mansa, Bom Jardim, São Gonçalo, Búzios, Sapucaia; Cordeiro, Itatiaia, Valença, Resende, Araruama, Macaé, Magé, Varre-Sai... Percebei, fluminense não é um adjetivo, não é algo aderido a estes que somos. Fluminense é substantivo, do mesmo modo que substancias são todos os atributos que nomeiam o mundo aí constituído: a restinga, maral, oleosa, salmourada, sinestésica, fértil; a guanabara, horizontal, urbana, velada, tórrida, célere; o brejo, lagunar, colonial, açucareiro, benfazejo; a serra, vertical, maciça, campesina, ancestral, sorridente, serena... uma pujança (!).
Com tal topologia, entretanto, tal instância essencial ainda não se mostra. Há de ser descoberta na silenciosa individualidade dos que aprendem a cultivar sua escuta... Cada qual, aqui, há de fazê-la por meio de uma experiência singular, e isso não deve ser pretexto para noticiar minha própria pessoa; esta fica aqui biograficamente sub-referenciada no registro que se segue.
*

Da casa situada em Mury, no oitavo distrito de Nova Friburgo, contam-se 846m. de altitude. Geralmente ensimesmado, aquele espaço entrega aos poucos sua intimidade com minha chegada. O quarto de solteiro é também o local de estudo e, apesar de confortável, é misto de cela de monge e dormitório de orfanato, nota sóbria dada pela mobília em pau preto. A janela se abre ao jardim, que seria morto durante a noite, não fossem o ruído de um córrego e os aromas de ervas que entram pelas venezianas. Um faisão assobia ao longe; minhas mãos, sobre os livros de filosofia, azulam com o frio; o corpo, no leito, experimenta a solidão perfeita traduzida na familiaridade do quarto, do jardim, dos ciprestes da cerca viva, da mata que sobe a encosta aí adiante, da rocha imemorial que se avulta em picos e penedos; enfim, do entorno. Pela manhã, após adaptar a vista ao brilho baço do sol daquelas serranias, vejo que o manacá que eu plantara de antanho floresceu pela primeira vez: uma única e pequena flor arroxeada que me permitiu articular – emocionado e grato – a identidade que sou em mundo. Mas seria mundo o melhor indicador do que significa ser fluminense? Ser fluminense é o pertencimento a um mundo ou a aspiração à “terra” que lhe é precondição?
Mundo e terra estão, aqui, deslocados de seu contexto filosófico original. Servem, contudo, como imagens plásticas para pensarmos nosso escopo, tarefa a nós favorecida pelas palavras de Michel Haar, em Le chant de terre:


"A terra possui um fundo secreto que resiste a toda elucidação, que não cede à violência de nenhuma explicação ou exposição. É preciso consentir a sua dimensão não laborada, sob pena de destruí-la. Ela deve se mostrar como esta que se reserva. Assim, a terra aparece bem no aberto, na claridade dos entes, mas como impenetrável. Ela é abertamente latente, manifestamente fechada. (...) Sendo essencialmente este movimento de tomada e retomada de si, ela faz surgir e aparecer visivelmente no centro do mundo este que se põe a cobrir. A terra é a livre aparição deste que reafirma constantemente seu ser. Como o domínio por excelência da livre aparição é o mundo, a terra torna-se ligada a uma condução ambígua e conflituosa com o mundo, seu contrário. (...) A terra não pode renunciar à abertura do mundo se ele deve aparecer ele mesmo como terra." (1)


Oculta, a terra é pano de fundo para o mundo, mundo é o aparecer da terra; é modo de ser que não se sabe pela via intelectual. Indômita, a terra não se submete ao olhar panorâmico das teorias, nem à autoridade dos pretensos sábios que as propalam. Terra libera a aparição do mundo dos entes e dos afazeres que, de fato, temos junto a esses; faz-se por meio de mundo sem com ele se confundir. Reafirma seu ser na tensão entre seu velamento e as amostras que dá no mundo; dá combate às ricas semânticas do mundo ao irromper com sua abissal indigência, sua originária pobreza: A terra nada possui; da terra nada nos podemos apropriar; com a terra recordamos apenas de nossa finitude de homens, do quanto o mundo nos é familiar e de que um deus chamado tempo é promessa para todo o porvir. A “fluminensidade” na qual habitamos é aqui forjada, é aqui conjugada.
Poucos sabem dessas premissas. Há quem diga que só os poetas o sabem, justamente por viverem predispostos à escuta das raízes na obscuridade do solo natal – “O poeta apenas, meu amigo; hoje só ele pode”(2) –. Entretanto, diante da necessidade de expressá-las, alguns deles deram a seu relato a roupagem de um romantismo de escola. Assim, fluminenses como Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, ao comporem inspirados pela escuta da terra mater, cantaram a nostalgia romântica da casa paterna, mas o faziam de tal forma que esses cânticos constituem autênticos poemas geográficos.



NOTAS:
1. HAAR, 2000, p.122-123.
2. GOETHE, 1920, p.2.




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